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O mundo é um moinho
Nem sempre duas pessoas se encontram no mesmo momento de suas vidas. Crônica inspirada em “O mundo é um moinho“, clássico de Cartola.
Desde o primeiro momento que viu Fátima, não fez outra coisa a não ser desejá-la. Pouco importou-se quando soube que ela era noiva de outro. A atração recíproca e imediata tratou de dar fim ao outro romance para dar espaço ao que viveram.
Os amigos tentaram alertá-lo sobre o caráter da moça. Chamaram-no para um bar na Vila Madalena, na zona oeste de São Paulo, e, no meio da conversa, tocaram no assunto:
— Nilson, pare de ser besta! Se essa mulher está envolvida com outra pessoa e te dando mole, fará o mesmo com você. Quando menos você esperar, te enfiará uma faca pelas costas, igual está fazendo com o noivo. — falou Rogério, amigo de longa data.
— Um raio não cai duas vezes no mesmo lugar — rebateu Nilson — Além do mais, tenho certeza de que ela realmente gosta de mim. Não é algo passageiro. Sinto que é coisa de verdade! Plena!
— Rapaz, você sempre teve sorte com mulher, vai se meter nessa fria e depois ficará chorando as pitangas. Por que não fica com uma destas que correm atrás de você? — retrucou Paulo, outro amigo dos mais chegados.
— Eu sei o que eu quero! Já está na hora de eu sossegar mesmo. Vivo como bicho solto há muito tempo, sem dar valor para rabo de saia nenhum e vocês são testemunhas disso. Acontece que encontrei a minha paz! — fez uma pausa para tomar sua cerveja e continuou — Não estou entendendo o que vocês querem, mas é o seguinte: não vou mudar de ideia!
Vendo que o amigo estava irredutível e sabendo como ele era quando enfiava uma coisa na cabeça, acharam melhor concordar para não dar problema. Aos olhos dos amigos, Nilson estava cego.
Os primeiros meses foram maravilhosos, muita alegria e parceria. Finalmente seu barco parecia realmente ter encontrado o porto seguro que tanto quis.
Havia alguns desentendimentos sim, mas nada de muito grave. Assim que eles acabavam, o sexo começava. E não era qualquer sexo, tinha a paixão que só se vê nas noites de primeiro amor.
Em um determinado dia, disse as palavras que qualquer mulher gostaria de ouvir:
— Fátima, eu estive pensando bastante e acho que a gente poderia pensar em se casar. Uma coisa simples, para a família, mas de muito bom gosto. Quero fazer tudo certo contigo!
— Ah, Nilson! Deixa passar mais um pouco… Temos tempo. Não vamos colocar o carro na frente dos bois!
O rapaz ficou contrariado com a resposta e encerrou o assunto. Mas sentiu que havia algo errado. “Será esse o meu castigo por todos esses anos de farra? Ter uma mulher que não quer nada sério comigo?”, pensou.
Passados alguns meses, tocou novamente na história do casamento. Dessa vez não ouviu que não era o momento, mas recebeu uma lista interminável de convidados, o que era totalmente contrário aquilo que pensava. Como estava desconfiado das intenções de Fátima, concordou para ver no que daria.
Dias depois, como esperado, a noiva colocou outra pauta em discussão: o local onde morariam. Entre outras palavras, ele teria que se mudar para onde ela queria, o que gerou mais um desentendimento entre o casal.
Nilson então notou que, cada vez que a relação começava a se solidificar ou fazer qualquer menção disso, Fátima arrumava alguma encrenca, algo para desestabilizar a relação. Inúmeras situações similares aconteceram. Resolveu abrir o jogo e ter uma conversa franca para que o rumo da ruptura mudasse. Em sua visão, o que faltava a noiva era se dar conta do que estava fazendo.
O resultado foi desastroso, Fátima ora o culpava por não ter paciência com ela, ora dizia que suas atitudes eram normais e que Nilson só poderia estar implicando.
Dali em diante, a qualidade da relação se jogou do penhasco. A moça não era apenas imatura demais para se empenhar em uma relação, também não tinha a grandeza necessária para aceitar os fatos.
Como teve a sua verdade exposta, bastava se sentir acuada para procurar no companheiro algum defeito para poder confrontá-lo. Algo que servisse como justificativa para seu comportamento ou que mostrasse que ela não seria a única a ter problemas.
Após constatar que não conseguia fazê-la entender o que estava acontecendo, Nilson decidiu se distanciar. Mesmo assim continuo aguardando-a, como um cão que espera o dono voltar. Fátima protestou muito para que o distanciamento não acontecesse, mas ele foi firme e manteve a decisão.
Algumas semanas depois resolveram se encontrar. A expectativa dele era a de um recomeço. Talvez o tempo que estiveram separados tivesse servido para que ela entendesse o que significa ter uma relação completa. Mas, o jantar não foi bem o que ele esperava.
— Você tem certeza de que e isso que quer? — perguntou para Fátima, com as mãos cobrindo o rosto e os olhos vermelhos.
— Tenho, Nilson. Acho que está na hora de você procurar alguém que atenda as suas expectativas. Eu não consigo. Tentei de todas as formas, mas o que você quer é complicado demais.
— Melhor eu pegar minhas coisas então…
— Elas já estão encaixotadas. Prefiro que pegue em outro momento, não quero passar pelo constrangimento de ter ver carregar as caixas.
— Mas…
— Não temos mais nada para conversar. — disse Fátima — Garçom, traga a conta, por favor.
Nilson desmoronou, mas se conteve para não fazer uma cena em público. O que o segurou foi a certeza de ter tentado, ter feito tudo o que estava em suas mãos para segurar aquele amor.
Vendo que seus esforços não fariam mais sentido, quando chegou em casa, escreveu uma carta para deixar registrado o que estava acontecendo a fim de lembrá-lo de que deveria manter distância daquela mulher. Naquela noite, Nilson matou Fátima. Não do jeito que todos morremos. Apenas para ele.
O mundo é um moinho
Composição e voz de Cartola
Ainda é cedo, amor
Mal começaste a conhecer a vida
Já anuncias a hora de partida
Sem saber mesmo o rumo que irás tomarPreste atenção, querida
Embora eu saiba que estás resolvida
Em cada esquina cai um pouco a tua vida
Em pouco tempo não serás mais o que ésOuça-me bem, amor
Preste atenção, o mundo é um moinho
Vai triturar teus sonhos, tão mesquinho
Vai reduzir as ilusões a póPreste atenção, querida
De cada amor tu herdarás só o cinismo
Quando notares estás à beira do abismo
Abismo que cavaste com os teus pés